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O descanso de Caim

29/09/2010.
E pôs um sinal em Caim, para que o não ferisse
qualquer um que o achasse.
Gênesis 4:15
Esqueça o prólogo da criação, não se deixe impressionar com as maquetes de Babel e com os efeitos especiais de Sodoma e Gomorra; ignore as aparições de anjos, as distrações da chuva e de sua trégua circular e as andanças de gente velha em busca da terra da procriação perdida. Em termos literários, o verdadeiro tema do livro de Gênesis é a rivalidade entre irmãos.

O tema do livro de Gênesis é a rivalidade entre irmãos.

Irmãos são estranhos que reconhecem sua origem comum, e nada há de mais estranho. São estranhos que conhecem a história um do outro, e nada há de mais incoveniente. São estranhos que se amam, e nada há de mais perigoso.
O que o fio narrativo de Gênesis propõe-se a encontrar, numa floresta de atalhos, é uma resposta para o que propõe ser o problema mais antigo de todos, o da convivência entre irmãos.


Caim e Abel: perseguido pela graça

A primeira instância da história provê para o problema a solução mais crua, mais brutal e talvez mais fiel ao retrato da humanidade. Um irmão crê não ter o que o outro tem, e o mata. Talvez não seja justo e definitivamente não é sofisticado, mas é limpo e eficaz: o problema literalmente deixa de existir.
O que Caim não tinha como prever é que sua sobrevivência pudesse se tornar problema maior e mais perene do que a impertinência de Abel.  Caim sabe que Abel morreu apenas uma vez, mas entende que ele mesmo terá de morrer várias vezes. “Serei fugitivo e vagabundo na terra, e será que todo aquele que me achar, me matará.” Ele intui, imediatamente e com acerto, que os que seguirem o seu exemplo serão simbolicamente seguidos pela sua maldição. Na história da humanidade, quem encontrar Caim irá matá-lo, porque o que Caim fez é imperdoável. Sua vida, depois de matar o irmão, será fugir e morrer.
A primeira solução é nenhuma: todos se vingam, mas todos morrem. Também é, de longe, a solução mais comum e de maior longevidade; vejam-se israelenses e palestinos, vejam-se nazistas e judeus, vejam-se todas as guerras, veja-se Tropa de Elite.
Porém Deus, ou o autor de Gênesis, quer que irmão suplantador seja perseguido pela vida de Abel, e quem sabe pela sua. O sangue do inocente exige uma reviravolta, e Deus coloca sobre o assassino um sinal de salvo-conduto: “e pôs um sinal em Caim, para que o não ferisse qualquer um que o achasse”. A sobrevivência do irmão de Abel é, incrivelmente, revertida em sua maldição. É um ato de misericórdia e de crueldade. O irmão vitorioso e solitário, condenado a vagar livremente pela terra, será perseguido pela graça, e isso lhe parecerá destino pior do que a morte.


Esaú e Jacó: a benção ou a vida

A segunda parada na peregrinação de Caim evita as cruezas mais evidentes da primeira história, mas não suas armadilhas, não seu destino, não seu pavor. Um irmão crê não ter o que o outro tem, e rouba aquilo que deseja para si: Jacó fantasia-se de Esaú e estorque do pai a benção do filho mais velho, tesouro que cobiça mas não lhe pertence.
Vitorioso, de posse do que sempre desejou, Jacó intui imediatamente sua vocação para Caim e foge de casa. Durante décadas o irmão de Esaú será, ele mesmo, fugitivo e vagabundo sobre a terra. Como Caim, Jacó será perseguido pelo favor de Deus, e encontrará a prosperidade em diversas formas, mas permanecerá para sempre incapaz de sorver a vida que crê ter subtraído do irmão.
O suplantador viverá sem jamais acreditar ser de fato possuidor daquilo que roubou. Se o homem divino na beira do riacho não o abençoar ele se sentirá lesado, pelo que parte para a altercação. “Me abençoe, se não eu te mato”.
Mas Abel desta vez está vivo, e caberá a Caim enfrentá-lo. Temendo o encontro com Esaú, que não vê há vinte anos, Jacó envia uma magnífica caravana de presentes para aplacar o que, ele tem certeza, deverá ser a cultivada ira do irmão.
A graça, porém, persegue Jacó impiedosamente, até o fim. O usurpador ultrajado, o ladrão lesado, terá de enfrentar o amor irrestrito do irmão que defraudou. “Então Esaú correu-lhe ao encontro, e abraçou-o, e lançou-se sobre o seu pescoço, e beijou-o; e choraram”. E, para coroar a infâmia, Esaú recusa os subornos que o irmão deitou diante dele, deixando claro que o favor divino não lhe faltou. “Eu tenho bastante, meu irmão; fique com o que lhe pertence”.
“Fique com o que lhe pertence”. Jacó não está preparado para essa acolhida. Ele aceita o abraço, mas entende que a verdadeira reconciliação é impensável. Os irmãos choram e se abraçam, mas partem cada um para o seu lado, cada um com o seu tesouro. A vida e a benção não são dons que tenham como compartilhar.


José e seus irmãos: a hora dos mortos-vivos

A última estação na fuga de Caim no livro de Gênesis recende ainda mais à história de Abel. Dez irmãos crêem não ter o que tem o meio-irmão, e livram-se dele. José é vendido como escravo, mas para os irmãos e para o pai (Jacó, o ladrão lesado da instância anterior) ele está morto. Ninguém volta vivo do lugar para onde ele foi.

Os anos se passam e, deste lado da história, o sangue de Abel parece ter se calado para sempre. Caim é vitorioso; seu estratagema deu certo e ele finalmente não precisa fugir. A graça, onde estiver, parece não ter como encontrá-lo desta vez.

Mas então morrem, simbolicamente, os sobreviventes. A fome apertou toda a terra, e os irmãos reconhecem que a única possibilidade de adiar a morte será buscando alguma migalha entre os egípcios.
A proximidade da morte obriga os ofensores, desta vez, a peregrinarem eles mesmos em busca da graça. E são, inevitavelmente, alcançados por ela. O primeiro-ministro do Egito dispõe-se a alimentá-los, desde que – para provarem que não são espiões – deixem um dos irmãos como refém e prometam trazer, na próxima viagem, o filho mais novo de Jacó.
Nesta hora, quando se vêem pressionados entre escolher a morte ou a perda de mais um irmão, os dez são forçosamente alcançados pela mais inesperada e torta das bençãos, o remorso.
“Então disseram uns aos outros: ‘Na verdade, somos culpados acerca de nosso irmão, pois vimos a angústia da sua alma, quando nos rogava; nós porém não ouvimos, por isso vem sobre nós esta angústia’.” E ao primeiro-ministro: “Que diremos ao meu senhor? Que falaremos? E como nos justificaremos? Deus achou a iniqüidade de teus servos”.
À sombra da morte, os assassinos foram achados pelo seu erro; falta apenas reconhecer que foram encontrados simultaneamente pela graça. Na segunda passagem deles pelo Egito José coloca os irmãos à prova e eles, incrivelmente, ousam pisar o caminho da redenção. Quando o primeiro-ministro acusa Benjamim de ter roubado seu copo de prata, Judá oferece-se para ficar prisioneiro no lugar do irmão.

O toque subversivo da graça segue-se de imediato, pela boca e pelas mãos do próprio primeiro-ministro.
“Eu sou José, irmão de vocês, a quem vocês venderam para o Egito. Não fiquem tristes, nem pese aos olhos de vocês terem me vendido para cá, pois foi para conservação da vida que Deus me enviou adiante de vocês.”

É momento de fulgurante, cegante ressurreição: de ambos os lados, os mortos foram encontrados pela vida. Abel, do seu túmulo, distribui favores e reconciliação. Os irmãos estarão juntos para sempre; a benção de um será a benção de todos.
“‘Digam a meu pai que ele habitará na terra de Gósen e estará perto de mim, ele e os seus filhos, e os filhos dos seus filhos, e as suas ovelhas, e as suas vacas, e tudo que ele tem’. E beijou a todos os seus irmãos, e chorou sobre eles; e depois seus irmãos falaram com ele”.

A peregrinação chegou ao fim. No último momento, na fronteira entre a morte e a ressurreição, a comunicação foi reestabelecida: “seus irmãos falaram com ele”. A graça alcançou-o em definitivo, e Caim pode finalmente descansar.

Li no Bacia das Almas, do Paulo Brabo!

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